Revolução ou Resistência?
Por Lucas G. Freire
Nota: Este texto pode ser lido isoladamente, mas inaugura uma série de estudos sobre Guillaume Groen van Prinsterer (1801-1876), historiador reformado holandês e crítico da Revolução Francesa. O equilíbrio delicado entre a obediência à ordem legítima, confessada pelas igrejas reformadas, e a resistência à eventual tirania do governo civil é um dos temas em sua obra. Groen foi um dos fundadores do Partido Anti-Revolucionário e militou pela liberdade no sistema educacional em seu país. Embora centradas na política europeia do século XIX, suas ideias têm implicações sérias principalmente para os cristãos que defendem a noção de governo limitado.
Vivemos num país marcado pelo revolucionismo. Isso não é acaso do consenso social-democrata dos nossos dias, em que a revolução estatista é consolidada sem que haja uma guerra civil. Isso também não é coisa da direita ou da esquerda dos anos 1960, quando o golpe de Estado tendendo para um lado foi mais eficiente na tomada de poder do que o golpe ameaçado pelo outro. Não: trata-se, pelo contrário, de uma tendência instaurada nos primeiros dias da República. Toda a história política do Brasil após aquele ‘golpe inicial’ é uma sucessão de revolucionismos. Não é surpresa que tenhamos nos acostumado com o ‘vale-tudo’ na disputa pelo poder.
Mas repare: nem toda resistência é revolucionista e violenta. Nem toda resistência é romper com a história. Existe resistência que denuncia a falta de legitimidade do poder tirânico. Esse tipo de resistência, sem covardia, protege a vida e se organiza dentro dos parâmetros da ordem. É resistência pública e com um fim bem definido. Não é uma revolução. Pelo contrário, nesse caso quem revoluciona é o poder tirânico que se deslegitima. A resistência legítima é uma forma de retomar o rumo correto, do modo correto. Não é uma tentativa de substituir todo o sistema por uma tirania alternativa. É resistência com continuidade histórica.
Cá nos trópicos, em matéria de política e de tantas outras coisas, nós somos mestres em copiar dos outros, acrescentar nosso próprio tempero e cruzar os braços para ver no que dá. Os revolucionismos que têm animado a história do Brasil são frutos de uma árvore, são ideias colocadas em prática, ações resultantes de visões. Se observarmos bem, acharemos a raiz dos revolucionismos brasileiros na Revolução Original – quando Adão tentou roubar da árvore de Deus e instaurar sua própria lei alternativa. De fato, desde então há em cada um de nós um pequeno tirano que precisa ser contido em seu impulso de exercer a violência contra o próximo.
Porém, isso é a causa geral de todos os revolucionismos, mas aqui estamos interessados é na identificação de uma causa mais imediata. Em termos mais precisos, uma observação da nossa história ligará essas tendências violentas à Revolução Francesa. Com alguma ironia, podemos até mesmo dizer que nossos revolucionismos são pouco originais no seu desejo de instaurar um novo sistema! Mas perceba que nossos revolucionismos ainda são nossos: vêm com certos acréscimos locais. Não somos, portanto, inocentes e passivos no nosso revolucionismo semi-plagiado.
A história nos pune sem surpreender. Para o cristão, logicamente, isso não é um mero juízo impessoal da ‘história’, e sim ação direta de Quem controla a história. Aqui, no ‘limbo’ de sermos eternamente o ‘país do futuro’ sem que esse futuro chegue, sofremos uma punição dupla: primeiro, por causa da tentativa perigosa de ruptura radical com tudo o que existe e, em segundo lugar, porque essa tentativa no nosso caso pressupõe essa continuidade paradoxal com revolucionismos alheios e alhures.
Como assim? Nossa formação histórica revolucionista ignorou os avisos da Revolução Francesa. Ignorou a denúncia das vozes proféticas dos grandes críticos daquela Revolução. Ignorou Burke, Tocqueville e tantos outros. Sem dúvida, ceifamos aquilo que foi semeado. Agora temos os frutos da árvore daninha do revolucionismo e do ‘vale-tudo’, do consenso estatista. Nem é preciso uma guerra civil, pois o ‘vale-tudo’ já foi institucionalizado. É exatamente a política do ‘vale-tudo’ que coloca um freio no nosso rumo ‘futuro’, empurrando-nos de volta a cada momento em que ameaçamos alguma melhoria.
É nesse novo sistema caracterizado pela normalização da subversão que precisamos lutar contra a tirania estatista. Devemos ter cuidado para não ser parte do mesmo revolucionismo que marca com tanta violência a nossa formação histórica. O povo reformado, desde Calvino, Knox, Althusius e Rutherford, tem cultivado uma tradição belíssima de resistência, reconhecendo a autoridade legítima e denunciando o capricho tirânico. Ao ser perseguido, o povo reformado teve parte em grandes episódios de protesto e autodefesa. Formulou ideias e colocou-as em prática. Ao obter algum poder, o povo reformado conteve algo do impulso tirânico da Revolução Original presente em cada um de nós. Fez isso na elaboração de instituições e de dispositivos para conter o poder governamental. Na vida e na obra de pensadores como Groen, Kuyper e Dooyeweerd, a tradição reformada reagiu tanto à Revolução Original como à Revolução Francesa.
Essas duas revoluções têm significância histórica para nós, pois vemos seus frutos nocivos ainda hoje na nossa sociedade. Em última análise, não é a política, e sim o Evangelho, que cortará o mal da Revolução Original pela verdadeira raiz. Porém, aqueles alcançados pelo Evangelho devem cuidar para que o Evangelho informe sua fé e prática para além da vida espiritual e devocional.
É verdade que o povo reformado teve seus episódios heroicos na história. Porém, quando o Evangelho é mal aplicado em outras áreas da vida, o risco é que o povo reformado passe a fazer parte do problema, e não da solução. E, sem uma política reformada, o povo reformado alcançado pelo Evangelho corre o risco de querer uma revolução de boas intenções. Mas de boas intenções a nossa política de ‘vale-tudo’ está cheia. Não é de uma revolução que o povo reformado precisa no Brasil. Precisa mesmo é de colocar sua fé em prática numa política reformada.
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